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Esperamos com este Blog dividir um pouco das inúmeras histórias que acumulamos na nossa profissão. São relatos engraçados, tristes, surpreendentes...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Denúncia de cárcere privado e abuso sexual em Santos Dumont-MG

Por Michele Pacheco

Desde segunda-feira estamos acompanhando este caso.
Nossas produtoras receberam a denúncia de que um homem estaria mantendo a mulher, os três filhos e o irmão dele em cárcere privado e ainda estaria abusando sexualmente da filha de 16 anos.
A família mora na zona rural de Santos Dumont.

Na segunda, a polícia civil estava à espera da liberação do mandado de busca e apreensão que vem sendo pedido desde junho deste ano.
O Conselho Tutelar encaminhou a denúncia ao Ministério Público e a promotora enviou pedido à justiça para liberação.
O conselheiro não foi autorizado a gravar entrevista porque o caso segue em segredo de justiça.

O mesmo ocorreu com o delegado que investiga o caso.
Ele já esteve na casa e apreendeu duas sacolas cheias de medicamentos controlados e de venda proibida.
O material estaria sendo usado pelo suspeito para dopar a família.
O operário aposentado também estaria recebendo as pensões de aposentadoria por invalidez do irmão, do filho mais velho e da mulher.

Na terça-feira, passamos o dia por conta de esperar a ação das autoridades.
Fizemos plantão na porta da delegacia e depois no Fórum.
Ficamos até tontos com o entra e sai do conselheiro.
Mas, nada de solução.
A promotora não quis conversar e o juiz explicou que recebeu os documentos na segunda e não teve tempo de avaliar.

Enquanto esperávamos, fomos informados de que o suspeito tinha acabado de entrar no Fórum.
Esperávamos um valentão de dois metros de altura e foice na mão.
Mas, encontramos um homem idoso, maltrapilho, quase sem dentes na boca e fala enrolada.
Ele parecia assustado e repetia o tempo todo que tinham feito uma denúncia falsa.

Começamos a conversar e o aposentado foi explicando que pega remédios para toda a família com uma receita que o médico passou.
Perguntei se ele não leva o pessoal para ser examinado e a resposta foi que é muito complicado.
Ele pega os remédios e medica todos em casa.

Lembra das sacolas cheias de medicamentos controlados?
Pois é!
Será que uma pessoa sem preparo e orientação na área de saúde é capaz de encontrar o remédio certo para cada um dos cinco doentes e de ministrar a dose certa?
O livre acesso aos fármacos, confirmado por ele, não facilitaria que o suspeito dopasse a família para evitar que alguém fugisse do meio do mato e fosse pedir ajuda?

A cada minuto mais dúvidas surgiam e nenhuma resposta convincente.
Nosso amigo Valdir Silva, radialista de Santos Dumont, nos fez companhia.
Ele também já tinha recebido denúncias sobre o caso e não tinha conseguido respostas das autoridades.
O que todos nós comentávamos é que o caso pode seguir em segredo de justiça, mas não tem lógica tanta demora em buscar resolver a situação.
A justiça liberar um mandado de busca e apreensão não significa que o suspeito vai ser preso.
Mas, garantiria que as autoridades acompanhassem mais de perto o problema.
Se as denúncias fossem comprovadas, aí sim o aposentado seria preso.

Cansados de esperar e sem previsão da liberação do mandado, decidimos ir à zona rural.
Começamos a gravar com o aposentado no Fórum, pois ele pediu para contar a história dele.
O papel de todo jornalista é ouvir todos os lados.
Não seria correto nos negarmos a gravar a entrevista.
Mas, a promotora veio apressada e disse que não poderíamos gravar com ele.
O homem ficou chateado e perguntou por que não queríamos ouví-lo.
Foi embora sem conseguir um advogado e sem saber o que as autoridades pretendiam com ele.

Foi a gota d'água.
Decidimos ir à casa dele ver de perto a situação da família.
Fomos com o Valdir e o Geraldo, do Jornal O Possante.
O caminho foi complicado.
Tivemos que deixar o carro perto do curral de uma fazenda e seguir à pé por uma trilha de animais.
Passamos por pastos, matas e riachos.

Depois de muitas curvas nos morros, notamos um bananal e o telhado de uma das casas.
Chamamos pelo aposentado e ele veio meio desconfiado.
Conversamos e perguntamos se ele queria contar a história da família.
Ele ficou satisfeito e nos levou a três casas e três barracos de pau-a-pique.

A profissão de jornalista é privilegiada.
Temos a chance de viver e ver de perto situações que a maioria das pessoas só vê nos filmes.
Esse foi um caso.
Para quem tem um teto decente, comida na hora que quiser, roupas, sapatos, acesso a todo tipo de modernidade é difícil imaginar como essas pessoas vivem.
As imagens são chocantes.

Foi difícil segurar a expressão de surpresa.
No primeiro barraco que entramos, não dava para ver nada.
Eles não têm energia elétrica, água encanada, banheiro, saneamento básico.
O irmão da vítima estava deitado numa cama feita de galhos e coberta com o que restou de um colchão velho.
Ao lado dele, uma pilha de roupas que cheiravam a urina e algo podre.
Ele não fala, não anda direito e passa o dia deitado.

No barraco seguinte, encontramos os restos de uma cadeira de rodas e uma corrente amarrada a um poste.
Prefiro nem imaginar o que é feito com aquela corrente.
O aposentado nos contou que na última chuva com ventos fortes, eles passaram aperto.
Por isso, quando começa a ventar, eles vão todos para aquele barraco que parece ser o mais seguro e ficam lá até o tempo melhorar.

Eu nem precisava ver o resto para ficar com um nó na garganta.
Mas, fomos em frente.
Noutro barraco fica a cozinha.
Se é que se pode chamar aquilo de cozinha.
Um fogão à lenha num canto, com três panelas com água.
Um banco rústico.
Uma prateleira com poucos potes pequenos, que são o que têm de mantimentos.

Na casa maior, há três cômodos.
No primeiro, roupas jogadas no chão de terra pareciam nunca ter sido lavadas.
Tudo escuro e úmido.
No segundo quarto, cena parecida.
No terceiro, dorme a adolescente.
Ela não queria sair no início, mas o pai a convenceu a conversar conosco.
Logo, ela já estava mais tranquila e falante.
Ficava o tempo todo dizendo que ninguém tinha "feito mal" para ela e que não estava grávida.

O que chamou a nossa atenção foi que, ao contrário do restante da família, ela não parecia sofrer as mesmas privações.
Havia restos de comida, garrafas de refrigerante e de iogurte, frutas e outros alimentos.
Isso nos lembrou que uma das denúncias feitas era de que apenas o pai e a filha tinham direito de comer a comida que era comprada em marmitex.
O restante se alimentava como animais, num cocho.
Não vimos nada parecido no local, mas as mordomias da filha são estranhas.

No quarto dela, várias bolsas e uma mochila de marca, sapatos e uma sandália de plástico que parece de uma marca famosa destoavam da pobreza em volta.
A cama tinha tanta roupa misturada que mal sobrava espaço para a garota deitar.
O tempo todo, ela ficava puxando a blusa para baixo e tentando esconder a barriga.
Se ela esquecia, o pai reclamava e mandava ela abaixar a blusa.
Ele contou que ela está com a mania de andar com a calça aberta e baixa, o que faz as pessoas pensarem que ela está grávida, mas não está.

Segundo o conselho tutelar, um exame da perícia foi feito na adolescente e confirmou que ela teve o hímen rompido.
O perito suspeitou que a barriga saliente e baixa poderia indicar uma gravidez e recomendou que se fizesse um exame específico.
Mas, a garota, que tinha sido levada para a cidade pelos policiais que estiveram nos barracos, já estava de volta à família e não compareceu à consulta agendada.

Além da garota, o aposentado vive com os dois filhos, um de 17 e outro de 19 anos, e a mulher.
Ela, tem problemas mentais críticos e mal consegue falar uma frase inteira com sentido.
Ficava o tempo todo dizendo que o filho estava armado e que tinham ameaçado ele com arma quando os "homens" chegaram lá.
Entendi que estava se referindo à visita dos policiais.
Eles nos contaram que tiveram que algemar um dos filhos, pois ele tentou agredí-los com um facão.

Moral da história, deixamos o local com mais dúvidas ainda.
O aposentado admitiu que recebe as pensões e que gasto com comida e outras coisas para a família.
Ele também confirmou que medica a todos, mas negou que mantenha alguém dopado.
Insistiu que as denúncias são mentirosas e inventadas por um parente.
Reclamou ainda que tem tido problemas com o empresário que é dono das terras onde ficam os barracos dele.
O pai do suspeito morava no local há uns 50 anos e ganhou do antigo proprietário permissão para continuar lá.
Mas, o homem morreu e as terras foram vendidas.
O novo dono estaria, segundo o aposentado, tentando retirar a família.

Enfim, tudo pode ser verdade.
O suspeito pode mesmo ser um dissimulado e ter ameaçado a família para que ninguém falasse nada sobre os maus-tratos, o cárcere privado e o abuso sexual.
Como também pode ser uma vítima de uma série de fatores.
Ser miserável e estar em terras cobiçadas.
Independentemente da verdade, o que importa é que aquelas pessoas não podem continuar vivendo de forma primitiva e desumana.
Se não for confirmada nenhuma irregularidade, pelo menos a prefeitura de Santos Dumont deveria enviar assistentes sociais para avaliar a situação da família e cobrar soluções.
O que já deveria estar sendo feito!