Caros amigos

Notícia porta de cadeia
Superadas as carroças com os surrados pangarés puxando humildes trabalhadores calçando chinelos de dedo, sobre pilhas de entulhos, na tortuosa e íngreme avenida principal do Linhares, nos aproximamos do Ceresp. Esta passagem se constitui parte fundamental desta história, porque, por incrível que pareça, boa parte das vezes que seguíamos em direção à cadeia perdíamos alguns preciosos instantes na Diva Garcia, com poucos pontos de ultrapassagem. Para o fotógrafo, então, parecia a eternidade. Aqueles segundos ou minutos poderiam representar a perda da imagem principal da notícia na unidade prisional, ou a oportunidade única dada pela polícia de chegar um pouco mais perto, o que era raro, por justificadas questões de segurança.

Especialmente quando estávamos com um dos nossos motoristas mais antigos na "casa" o encontro com os cavalos e seus vagarosos passos parecia marcado. Ele reconhecia isto. Levantava as mãos pro céu, as batia no volante e suplicava:
- Será possível? O problema é comigo! Toda vez que passo aqui é a mesma coisa!
Ultrapassado o primeiro obstáculo entramos à esquerda e ganhamos a pequena reta, com fim no portãozinho de acesso a outro trecho curto, de subida e curvas ainda mais fechadas, até chegarmos ao prédio do cadeião, no pé da úmida montanha. Quando a informação era de que "a cadeia poderia virar" [1], em meio a mais um tumulto, o movimento intenso de viaturas policiais, em alta velocidade, naquele espaço apertado, aumentava nossa preocupação com um acidente. Felizmente, sempre passamos ilesos.
Na porta do Ceresp em dias de ocorrências, cada vez mais constantes, como brigas de presos, ameaças de rebelião, suspeitas de fuga, possibilidades de desabamento de muros e apreensão de armas e drogas e outros bagulhos mais, os cenários deixaram marcas. Em algumas semanas, a freqüência da ida da imprensa ao local era tão grande, que creio ter passado mais tempo na área da cadeia, do que em casa ou no jornal. Era preciso paciência e contato permanente com a equipe na redação, administrando o tempo de fechamento da reportagem e adiantando informações, para serem levadas à reunião na qual eram definidas as prioridades.
Era agonizante aguardar do lado de fora alguma novidade em meio ao entra e sai de carros da polícia e do Corpo de Bombeiros, com os motores acelerados e as sirenes ouvidas ao longe. Caso o policial na direção fosse conhecido, corria até o veículo e tentava arrancar algumas rápidas palavras. A atenção era redobrada, face ao clima tenso, responsável por transformar o ambiente em frações de segundos. Quando parecia calmo, começava o bochicho de novo.
Se o sol rachava sobre nossas cabeças, num calor de arrancar o couro, a encolhida sombra na barraquinha de lanche em frente ao prédio do Ceresp era disputadíssima. Às vezes, dava tempo de tomar um refrigerante, comer uma cocada, especialidade da casa, e colocar a conversa em dia com os colegas de imprensa. Mesmo assim, o sossego perdia para os mosquitos e seus companheiros insetos das mais variadas espécies, cachorros com os pêlos esgarçados, latidos desafinados e pulgas em festa, e cavalos, com as ferraduras desgastadas e o lombo castigado pelo sol e carrapatos, repetindo o estado precário daqueles das carroças, zanzando de um lado pro outro. Todos pareciam desnorteados, inclusive nós quando não tínhamos mais posição que aliviasse.
Quanto mais o sol dava as caras, mais fediam os latões de lixo perto da barraca, nos quais eram jogados, também, os dejetos da "panela de pressão" que se tornou o Ceresp. Na entrada do cadeião, íamos do deserto ao Pólo Norte. Quando chovia fino e fazia frio, o desafio era anotar alguma coisa no bloco respingado e ficar de cabeça em pé duelando com o vento, na tentativa frustrada de evitar que ele cortasse os lábios. Exigir do cara da barraquinha um caldinho quente, na linguagem popular o famoso "péla égua", aí já era demais.

Em meio às temperaturas, que mudavam repentinamente, e ao diversificado reino animal, parentes desesperados, com sacolas e alimentos nas mãos, na espera da notícia, sempre reservavam imagens e depoimentos reveladores da realidade de quem estava lá dentro das celas. Mulheres grávidas, algumas novinhas ou noivinhas apaixonadas, e idosos subiam o morro às pressas e tinham que ser acudidos. Faltava-lhes o fôlego e a pressão ameaçava o sofrido coração. Outros familiares chegavam no automóvel velho, caindo aos pedaços, mas tratado com carinho, com valor de carro de bacana. Na porta do Ceresp, víamos a dor em contraste com o alívio daqueles que cruzavam as grades, com destino à liberdade, pelo menos física. Esta talvez não fosse a "tão sonhada liberdade".

[1] Expressão usada pelos presos quando anunciam a possibilidade de um motim